A inundação do nosso amor...

 


Era uma tarde de terça-feira, maio havia acabado de chegar, trazendo consigo um dia nublado cheio de nostalgia e preguiça. Como toda tarde, eu e minha amada já estávamos postos juntinhos na varanda da nossa casa, vendo o tempo passar ao prosearmos e praticarmos nossos hobbies favoritos.

Avistando Angélica concentrada no seu bordado, a encarava sem vergonha, continuando a desenhar. Eram 50 anos de casados, e ela continuava tão linda, tão encantadora.

Usando um pijaminha vermelho com flores amarelas, que realçava sua pele branca, seus olhos e cabelos dourados, não quis me conter nas palavras:

 - Eu estou tão apaixonado por você novamente, meu benzinho - confessava todo manhoso, assistindo-a abrir um sorriso largo, e em seguida fixando os olhos em mim.

Meu anjo colocou uma de suas mãos em meu rosto e sussurrou um eu te amo, tão fofo, mas tão fofo que eu poderia morrer satisfeito naquele momento com aquela cena. Ela sabe como me derreter.

Dei um selinho demorado nela, me declarando de volta em gestos, sentindo as mesmas sensações de quando tinha acabado de a conhecer no auge dos meus 20 anos. Estávamos na nossa bolha de amor, e aproveitávamos cada instante juntos. 

Ali só existia nós e o nosso amor duradouro. Os nossos frutos já se encontravam grandes, frutificando em muitos lugares deste mundo. Não tínhamos muito no que nos preocuparmos, ao não ser nos amarmos a cada dia, para sempre.

Com a cabeça em meu ombro, e minha mão direita entrelaçada com a sua, nossas atenções achava-se agora em nosso jardim de lavandas e no céu cinza avisando que iria chover. Avistando de longe a casa dos nossos vizinhos, comentarmos de como era bom morar ali, de como tínhamos paz e sossego para vivermos nos últimos anos de nossas vidas.

De repente o vento soprou mais forte, e a chuva começou a fazer seu trabalho. Com a ajuda do meu cajado, levantei com certa dificuldade, peguei os utensílios dos nossos hobbies e guardei em nosso quarto, voltei indo ajudar Angélica a conduzir na cadeira de rodas. Entramos trancando a porta, sentindo que estávamos seguros dentro do nosso lar aconchegante. Fui fazer café para nós, escutando o mundo desabar por detrás da nossa porta.

Em poucos minutos que havíamos entrado, me desesperei assistindo a água invadir nossa moradia. Morávamos há 20 anos no sul do Brasil, nunca algo igual havia acontecido. Tentei me manter calmo para não desesperar minha Angélica, até que vi as rodas de sua cadeira rodeada de água, e veio tantos pensamentos ao mesmo tempo que quase não soube o que fazer, não percebendo que a água estava na minha canela.

O barulho dos trovões, do vento e da chuva caindo sem pudor lá fora me deixava aflito, que não me importava comigo, só queria a salvar daquele dilúvio. Indo em sua direção, por pouco quase desabei vendo Angélica começar a chorar, no entanto, respirei fundo a fazendo se acalmar. Me virando para ver da janela o nosso jardim, me assustei com tudo inundado. Meu coração doía, eu só queria gritar e fugir com ela dali, porém entendia que não tinha muito o que fazer...

Em milésimos de segundos aquela chuva também estava nos inundando, dentro da nossa própria casa. Assistindo nossos móveis, nossas fotos, tudo que a gente conquistou juntos se perder naquela água, entendi ao olhar dentro dos olhos em lágrimas da minha amada, que também havia aceitado o nosso fim. A levando para o nosso ninho de amor, nosso quarto, ali entendemos que tudo começou com nós e iria terminar com o nó.

Vendo meu lápis com meus desenhos sob a cama quase submergida, Angélica sugeriu que eu desenhasse, ela sabia que desenhar me acalmava. Decidi não desenhar, mas rabiscar algumas palavras com o apoio da parede, era uma oração no meio daquele caos.

Agradeci por tudo que vivi, pelos meus filhos, pelos meus netos, pela minha amada, pela minha vida. Estava pronto, eu tinha tudo, fui feliz, amei e fui amado, aproveitei todos os momentos que Ele havia me concedido. Não tinha mais o que fazer, a hora havia chegado. Me encontrava com ela, minha Angélica, o amor da minha vida. Não havia como parar tudo aquilo, era inevitável, o fim se aproximava. E finalmente iria ver Ele.

Algumas lágrimas se exibiram, no mesmo compasso que deixei meu lápis e aquele papel cair sob a água que já estava nos alagando. Eu poderia sair daqui para pedir ajuda, poderia tentar nadar, mas como poderia a deixar sozinha com companhia de sua cadeira de rodas? Não havia chances disso.

Abraçados em um enlace forte no canto da parede, Angélica orava pedindo para aquilo parar, ela clamava, fazendo meu peito rachar em pequenos pedaços. Estava tão agoniante, agonizante, eu compreendia o que ela sentia, e foi quando algumas declarações de amor foram feitas ali naquele quarto, pela última vez. O amor dela esquentava meu coração. Mesmo em meio aquele caos. Nós nos amávamos mais que tudo. Eu tinha ela, eu tinha tudo. E ali nós partimos juntos, para o nosso lar eterno, não só inundados pela água da chuva, mas inundados de amor.


(texto narrativo para um trabalho que escrevi me inspirando na tragedia que está acontecendo no Sul do Brasil... por favor, não deixem de orar, e ajudar de alguma forma... :( Ele está no controle de tudo... )

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